
A habilidade de fazer modificações no genoma humano tem sido o objetivo da Medicina desde o conhecimento do DNA como unidade básica da hereditariedade e, nesse contexto, o conceito de terapia genética – surgido nas décadas de 1960 e 1970, tendo seu primeiro teste clínico bem-sucedido divulgado em 1990, nos Estados Unidos – é um tratamento que introduz no organismo genes saudáveis – chamados de terapêuticos ou de interesse – para substituir, modificar ou suplementar genes inativos ou disfuncionais que causem algum problema de saúde.
A terapia gênica pode tratar diferentes tipos de condições e as principais aplicações da técnica são utilizadas no tratamento de Doenças hereditárias e raras, que podem ser causadas pela mutação de um único gene, como na hemofilia e em doenças metabólicas; Doenças multifatoriais, que podem ser causadas pela mutação de diferentes genes, ter influência do ambiente e/ ou ter causa desconhecida, como a doença de Parkinson e no tratamento de Câncer, através da terapia CAR-T Cells, que usa as próprias células do paciente para agir em alvos específicos, células que são extraídas e moldadas em laboratório para combaterem o próprio câncer, depois, são injetadas de volta no paciente, terapia utilizada principalmente no tratamento de cânceres hematológicos, como leucemias e linfomas.
No Brasil, desde 2018, os Produtos de Terapias Avançadas, dentre os quais se encontra a terapia genica, são regulamentados pela ANVISA como tipos especiais de medicamentos complexos e inovadores, os quais muitas vezes são registrados sob condições especiais, que requerem, por sua complexidade, inovação e riscos, monitoramento contínuo e análises periódicas, com o objetivo de garantir que decisões regulatórias sejam embasadas em evidências robusta.
De fato, a ANVISA, estabeleceu através da RDC 505/2021 que os registros de PTAs que necessitam de dados adicionais comprobatórios de eficácia, efetividade e segurança de longo prazo devem ser monitorados anualmente pela Anvisa.
Referida classificação repercutiu no setor de saúde. Na saúde suplementar, sobretudo quanto à cobertura destes produtos pelos planos de saúde privados, o art. 12, II, “d”, da Lei nº 9.656/1998 (Lei dos Planos de Saúde) e o art. 8º, III, da Resolução Normativa nº 465/2021 da ANS preveem cobertura obrigatória para medicamentos com registro na Anvisa, se utilizados em procedimentos listados no Rol da ANS no âmbito da segmentação ambulatorial e quando administrados durante a internação hospitalar.
Diante desse cenário, em 2023 a diretoria colegiada da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) estabeleceu novas regras de cobertura para produtos de terapia avançada na saúde suplementar através da qual os produtos assim classificados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) no momento do seu registro, deverão passar pelo rito de análise técnica e participação social antes de serem incluídos no rol de coberturas obrigatórias a serem garantidas pelas operadoras de planos de saúde.
De acordo com a Agência reguladora, a própria classificação especial dada pela ANVISA para essas terapias, por meio da criação da categoria específica de produto de terapia avançada, somada às condições especiais de registro das mesmas, demonstram sua natureza complexa e inovadora, motivo pelo qual necessária a submissão desses produtos à Avaliação de Tecnologias em Saúde (ATS) e ao crivo da participação social para uma incorporação segura, efetiva e sustentável, que leve em consideração os benefícios, riscos, incertezas e altos custos inerentes a esse tipo de produto.
Em resposta à nova regra de regulamentação da ANS acerca das terapias avançadas, a indústria farmacêutica, através do SINDUSFARMA ingressou com uma ação judicial no TRF 3ª Região com o objetivo de anular os efeitos da deliberação da Diretoria Colegiada (“DICOL”) da Agência Nacional de Saúde Suplementar que havia aprovado a Nota Técnica nº 03/2023/GCITS/GGRAS/DIRAD-DIPRO/DIPRO (“Nota Técnica nº 3/2023”), que determinava que os produtos de terapia avançada fossem submetidos ao rito de atualização do Rol da ANS.
Na referida ação, foi concedida a tutela de urgência pleiteada pelo Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (“Sindusfarma”), excluindo, em caráter provisório, a necessidade de os produtos de terapia avançada se submeterem ao procedimento de atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da Agência Nacional de Saúde Suplementar (“Rol da ANS”), liminar que permanece vigente até o momento.
A repercussão sobre o tema é justificável não só pela excepcionalidade no registro desses produtos pela própria ANVISA – que determina o monitoramento de longo prazo para confirmação de dados de eficácia, efetividade e segurança obtidos na fase de pós-registro – mas pelo custo milionário das terapias avançadas e os desafios para o orçamento dos sistemas de saúde público e privado.
A título exemplificativo, um dos medicamentos inclusos na relação de terapias avançadas é o Zolgensma, usado no tratamento para crianças com atrofia muscular espinhal (AME) e conhecido como o medicamento mais caro do mundo e, de acordo com dados do Ministério da Saúde, o SUS financiou pelo menos 75 tratamentos por meio de ações judiciais, a um custo de R$ 12 milhões de reais por dose, totalizando R$ 715,7 milhões de reais antes mesmo de sua incorporação ao SUS.
De acordo com dados do Governo Federal, a previsão orçamentária para a saúde em 2025 é de R$ 208 bilhões de reais e a inclusão de 15 novos tratamentos avançados contra doenças raras e onco-hematológicas com remédios de última geração pelo SUS pode ter um impacto de até 53,2 bilhões de reais nas contas públicas, valor que representa um quarto da previsão orçamentária total do Governo com saúde no ano.
Inobstante a inconteste revolução que as terapias avançadas representam no tratamento e esperança de cura para doenças crônicas e de fundo genético, a garantia do direito de acesso da população a esses tratamentos inovadores representa um desafio hercúleo para o SUS e a saúde suplementar devido ao seu elevado custo — os tratamentos variam de R$ 2 milhões a R$ 19 milhões por paciente.
Nesse contexto dicotômico – de tecnologias revolucionárias, porém inacessíveis à maioria da população – é necessário que se amplie o acesso à população aos produtos de terapias avançadas através do fomento de competências tecnológicas nacionais aliada à ampliação de parcerias com o setor industrial, minimizando o impacto financeiro das tecnologias e mantendo a sustentabilidade dos setores de saúde público e privado, sob pena de não conseguirmos alcançar o objetivo final da medicina, qual seja: a prevenção e combate das doenças.